segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Entrevista Dirce Machado

Dirce Machado é uma mulher de coragem. Aos 14 anos saiu de casa para ingressar no Partido Comunista do Brasil (PCB). Ajudou a construir o Partido entre os camponeses, participou da Revolta de Trombas e Formoso, foi perseguida e presa no período do gerenciamento militar, mas nunca deixou de acreditar que os brasileiros precisam lutar e construir um mundo melhor


Num fim de tarde cheguei à casa de Dirce. Seu olhar é severo, firme. Algumas respostas são secas. Ela tem um pouco de dificuldade ao falar, mas sempre que o faz é em tom de autoridade.

A vida de Dirce, desde o início, foi marcada pela política. O que a levou a se transformar na mais jovem militante do Partido Comunista do Brasil, em Goiás, é justamente a vida que ela levava.

— Eu nasci em Rio Verde, em 1934, numa fazenda, éramos muito pobres. Eu achava injusto demais, meu pai trabalhava na meia. A gente plantava, quem colhia primeiro era o patrão, da abóbora ao quiabo, tudo. Minha mãe trabalhava e não tinha salário. Eu trabalhava junto com ela, fazíamos tudo de pesado, matava porco, lavava garrafa para colocar a pinga que era feita na fazenda, colocava açúcar para secar, eu ia para a roça com meu pai.

Para o camponês religioso e tradicionalista é Deus quem rege o destino de todos, quem decide quem deve ser rico ou pobre. Mas Dirce, desde pequena, desconfiava que a vida não era e não tinha que ser exatamente assim. Para ela, o certo não deveria ser que uns trabalhassem enquanto outros colhiam os frutos do trabalho alheio.

— Éramos funcionários de uma fazenda do meu tio. Nos tempos do Partido Comunista na legalidade, eles se filiaram porque um parente candidatou-se a deputado, o Agenor Diamantino. A família toda entrou. Meu tio continuava apoiando o Partido e comprava livros que o Agenor levava.

Em 1947, o registro do Partido foi novamente cassado. Mas dessa vez, a ilegalidade do Partido representaria uma mudança na vida de Dirce. Ela foi encarregada de queimar a biblioteca "comunista" que seu tio possuía.

E Dirce foi. Começou a queimar um por um. De vez em quando parava, olhava os títulos. Os olhinhos brilhavam, mas ela tinha que obedecer. Era preciso queimar todos. Dirce tinha estudado muito pouco, mas sempre foi apaixonada por livros. Após queimar vários deles, seus olhinhos se deteram em um livro especial: Cavaleiro da Esperança, de Jorge Amado, que conta a história de Luis Carlos Prestes. Ela ficou encantada e mesmo desobedecendo às ordens do tio, leu algumas páginas. Dirce escondeu o livro num paiol, depois o levou para casa.

O mundo do Cavaleiro da Esperança deixou Dirce completamente fascinada:

— Eu tinha 14 anos e me apaixonei pelo livro. Minha mãe não gostava que eu lesse porque ficava triste, chorava muito. Nossa luz era de lamparina, então quando meus pais dormiam, eu ia pro paiol, pegava a lamparina que tinha escondido e ia para lá ler, lia até tarde. Eu lia trecho por trecho, cheguei quase a decorar o livro. Eu achava que o personagem do livro era fictício.

E certo dia apareceu na fazenda um jovem distribuindo um jornal, era o Terra Livre, com a manchete: Aniversário do Cavaleiro da Esperança.

Dirce pegou o jornal, seus olhos não conseguiam acreditar no que viam. Ela foi sentindo o sangue subir, o rosto embranquecendo, a visão escureceu. Não sabe quanto tempo permaneceu desmaiada. O mundo de Dirce modificou-se completamente após a descoberta. Sua cabeça não parava. Afinal, o Cavaleiro da Esperança existia. É como se, num passe de mágica, Dirce houvesse entrado no livro. Já não era apenas uma leitora e se transformaria em personagem, em parte da história.

A casa de sua família, de simples morada de camponeses pobres transformou-se em aparelho do Partido Comunista. Fugindo da polícia e sem lugar para reunir-se com tranquilidade em Rio Verde, os militantes do PC se dirigiram à casa de Dirce. Ela os recebeu com tranquilidade, mas sem entender muito bem o motivo que os haviam levado à sua casa. Dias depois a família de Dirce teve que se mudar da Fazenda. Começaram as perseguições.

— Eu não era comunista, não sabia nada e fui perseguida. Para mim foi tudo rápido, eu entrei na onda. Eu era muito astuta, não me importava muito com as coisas. O que eu queria era mudar.

Em Rio Verde, Dirce foi convidada por João Soares, conhecido como Soarão, e por Antônio Sississi a entrar para o Partido e mudar-se para Goiânia, a capital. Sem pestanejar, ela aceitou. Para Dirce, não havia mais como viver em Rio Verde. No coração do Brasil, mulher podia ser tudo, prostituta, alcoviteira, fofoqueira, mas comunista era demais. E Dirce foi para Goiânia, achando que poderia mudar a sua vida e a de muita gente. E de fato, mudou.

Em Goiânia, Dirce militou na União da Juventude Comunista (UJC). E como todo jovem comunista, distribuiu jornais, panfletos e pichou muros. Dirce talvez entendesse como ninguém como urgia que as modificações no país começassem pelo campo. Havia sentido na pele toda a exploração a que os camponeses eram submetidos no país. Ela pediu para ser transferida para Ceres. O Partido desenvolvia um trabalho com os camponeses da Colônia Agrícola e lá também estava João Soares, que era como um pai para ela. Em Ceres, Dirce se junta a outros militantes. Todos viviam juntos, compartilhando os desafios da construção do Partido na região, plantando e colhendo, organizando grupos de leitura e fazendo planos revolucionários.

— Tive muita formação política durante minha adolescência no Partido. Era da secretaria de finanças. Fazíamos campanhas de finanças, rifas e tínhamos vários contribuintes voluntários. O Partido estava na ilegalidade e se nós não fôssemos buscar o dinheiro, o pessoal ficava bravo. Em Uruaçu, tinha um senhor que só dava o dinheiro para mim.

CONSTRUIR O PARTIDO E A RESISTÊNCIA

Dirce não poderia mudar para a região de Formoso solteira. Jovem, bonita e rebelde, não seria aceita pelos camponeses. O casamento então, tornou-se um imperativo, mas nada forçado. Afinal, o companheiro que Dirce escolheu era também um camarada do Partido. Havia amor e companheirismo entre os dois.

Nove dias depois do casamento, Dirce se mudou com o marido para a região de Laginha, entre Trombas e Formoso. O casal tinha uma tarefa árdua nas mãos, ajudar, junto com os outros camaradas que já estavam na região, a organizar o Partido e a resistência contra os grileiros.

— Nós fomos para a posse de um simpatizante do Partido que já conhecia a gente na Colônia e de lá começamos a trabalhar. Eu fazia tudo de tudo. A primeira coisa era entrosar com o povo porque a gente era totalmente diferente.

No início houve um estranhamento, Dirce não nega. Tinha os cabelos curtos, usava calças, discutia política, brigava e enfrentava até os homens. Mas também era moça prendada. Sabia lavar, cozinhar, cuidar das crianças, fazer farinha, carpir, plantar e ainda tinha conhecimentos em saúde e higiene.

Dirce, além de ajudar nas tarefas gerais de organização do Partido, desenvolveu um trabalho especial juntos às mulheres. Aos poucos, se formou o que ela chamou de Quartel General Feminino. Eram cerca de dez mulheres, mas muitas ajudavam, cuidando dos filhos de quem estava na frente, levando notícias, comida, etc. Dirce dirigia o QG das mulheres, mas a participação de todas era muito ativa.

— Nós pegamos em armas. Não houve enfrentamento porque os grileiros não entraram, mas se houvessem entrado, estaríamos preparadas.

O QG feminino fazia muito mais do que se preparar militarmente. Formaram uma grande família. Fizeram da luta pela terra a eternização de um sentimento de agradecimento e companheirismo.

— Tive três dos meus quatro filhos naturais no meio do conflito. Não tive maiores problemas porque as companheiras eram todas solidárias. Eu tomava conta da batalha e elas tomavam conta dos meus filhos. E eu tomava conta dos filhos de todo mundo também, ajudava sempre, dava remédio, etc. Não existe uma relação igual a nossa, até hoje. Esses velhos companheiros são mais do que irmãos...

E VEIO A VITÓRIA

Ao final de 1957, após forte pressão popular e a certeza de que os camponeses não desistiriam de defender suas terras, uma Comissão Parlamentar de Inquérito foi instaurada e visitou a região. O juiz já havia dado ganho de causa aos camponeses, afirmando que os documentos haviam sido forjados e constatando, portanto, a grilagem. As tropas policiais foram retiradas da região e começou o processo judicial para a destinação das terras aos posseiros.

— Nós conseguimos tudo, inclusive o registro da terra. Mas ficamos pouco tempo com a terra porque logo veio a ditadura militar. Mas todo mundo já tinha gado, plantação e casa.

As famílias prosperavam, apesar das dificuldades. Dirce chegou a criar uma escola na região para alfabetizar adultos e crianças.

Dirce faz questão de lembrar que o Partido estava ali, pulsante, vivo e determinante na vitória dos camponeses. O Partido não só ajudou a canalizar a revolta dos camponeses, mas a construir um pedaço de um novo mundo em Trombas e Formoso. A região desenvolveu-se e um outro tipo de sociedade começava. Não havia polícia, nem juiz, mas havia uma ordem comandada pelos próprios camponeses, através do Conselho de Córregos.

— A idéia da criação do Conselho foi da Associação. Todas as famílias faziam parte da Associação dos Posseiros. Lá era tudo muito organizado. A terra foi dividida de acordo com a posse que a pessoa tinha, mas ninguém tinha muito mais do que outro, dependia da qualidade da terra, da existência de água. Mas em geral as posses tinham 80 alqueires.

MAS TAMBÉM VEIO O GOLPE

1964. As coisas começaram a mudar em Trombas e Formoso. Dirce suspira. Os olhos ficam tristes e o semblante volta a ficar sério. Lembranças amargas que deveriam, mas jamais serão esquecidas. Perseguição, fuga, tortura, sofrimento.

O Exército chegou à região. Dirce se refugiou num pé de serra, no meio do mato. Os filhos foram para casa de parentes e ela e o marido desapareceram, até mesmo para garantir a sobrevivência de familiares e amigos. A esta altura o marido de Dirce já fazia parte do Comitê Central do Partido e, na região, eles eram as figuras que primeiro seriam caçadas pela polícia.

— Eu fui com meu marido até um ponto, depois fui parar numa caverninha, sozinha, em Campinorte. Não tive medo. Eu fiquei sozinha 15 dias. Tinha uma pessoa que de vez em quando levava as coisas pra mim, como comida.

Dirce começa a contar sua rota de fuga, empolga-se. De repente pára, me olha, sorri e diz que eu gosto demais de bisbilhotar....

O marido voltou após retirar a direção do Partido da região. Eles passaram cerca de um ano escondidos na caverna. No esconderijo, Dirce foi picada por uma lacraia e passou maus bocados, sozinha. Os dois se dirigem a Brasília. Após curar-se, Dirce voltou para o esconderijo, na caverna. Algum tempo depois, eles decidiram voltar para a posse do Formoso, mas continuar escondidos na mata. Eles ouviam constantemente rádios internacionais e acreditaram que poderiam voltar à legalidade. Era 1967. Tudo estava planejado, eles voltariam, talvez um deles fosse preso, mas com a ajuda de advogados logo sairiam da prisão. Mas as coisas não aconteceram como o planejado. O irmão de Dirce foi preso antes que eles pudessem efetivamente voltar à sede da posse.

— A polícia, o Dops, foi me prender e eu não estava. Eles pegaram um funcionário nosso, o Zé, bateram tanto, só faltou matar. Aí o Zé acabou levando eles onde nós estávamos.

Eles foram presos e levados para Goiânia. A polícia fazia, propositalmente, um vaivém no intuito de cansá-los, desanimá-los, enfraquecê-los, mas tudo foi em vão. Dirce e o marido ficaram presos por dois meses. A soltura veio com a pressão do Partido, dos amigos, intelectuais democratas e até mesmo da Maçonaria.

Ela não fala sobre torturas. Eu fico acanhada. Mas pergunto.

— Disso a gente não fica livre não.

Mas é Geni, irmã de Dirce, quem abre as portas dessa memória tão dolorida.

— Quando ela foi presa junto com o marido, bateram muito nela. Bateram muito no meu cunhado e no meu irmão. Bateram muito no ouvido dela. Depois, pressão psicológica.

Após o relato da irmã, Dirce abre seu coração.

— Eles queriam saber tudo do Partido. Até então eles não tinham documento nenhum que provasse que a gente era comunista. Nós não falamos nada. Eles queriam saber onde estava o Porfírio, o Mauro Borges e outros líderes. Eu falei que não sabia e que se eu soubesse também não contaria.

Dirce continuava audaciosa. E esta era uma postura que se verificava entre as mulheres comunistas. Quanto mais seus algozes impunham-lhe sofrimento, mais demonstravam coragem e amor à causa. Um dos torturadores afirmou que não ia bater "numa puta safada dessas" porque a esmagaria. A resposta de Dirce foi imediata: "pode bater porque eu sou macho igual a você". E ele bateu.

— Eu os vi torturando meu marido e meu irmão a poucos metros de mim. Eu virava o rosto, mas eles puxavam meu cabelo pra eu ver o que eles estavam fazendo. Tem hora que a gente perde o raciocínio, né? Meu marido com a cara toda ensanguentada, amarraram ele pelos pés, numa árvore e começaram a puxar. Eles tinham dito que matariam meu marido enforcado. Quando eu olhei, enforcado pelos pés (?!), eu não aguentei e dei uma gargalhada. Aí eles me bateram. O plano deles era me fazer ficar de joelhos, chorando, implorando, isso eles não conseguiram nunca.

Uma vez em liberdade, Dirce voltou com o marido para a posse. Eu pergunto o que eles fizeram depois que foram soltos. Ela me responde com naturalidade: "voltamos pra casa, fomos tocar a roça e reorganizar o Partido". Mesmo livre, Dirce continuou perseguida. Vez ou outra tinha que dar depoimento, a polícia aparecia, prendia por um tempo, fazia ameaças. Mas nada disso calou a sua rebeldia.

Eu pergunto se ela passou alguma dificuldade por ser mulher e comunista. O velho sorriso, já meu conhecido, após horas de conversa, me mostra os dentes de Dirce.

— Eu acho que eu não passei dificuldade nenhuma. Para os outros é que era difícil. Porque toda vida eu fui um 'trem' assim, se diziam "mulher não faz isso", aí eu ia lá e fazia — conclui.

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